8.12.10

Crises que vêm por bem. Contribuições para um sector cultural diferente


















1. Esqueçamos por um momento o mérito e oportunidade dos cortes ao financiamento à cultura por parte do Ministério. A presente crise apresenta-se como uma oportunidade única para rever os pilares onde assenta todo o tecido cultural português, ainda aprisionado a um modelo ultrapassado, ancorado em excessos românticos e voluntaristas, e caracterizado por uma crónica dependência do Estado.

2. A constatação que o presente modelo não é sustentável, não respeita nem promove a independência do tecido cultural, a autonomia e liberdade dos artistas, é crucial para dar os necessários passos para uma pragmática revisão da relação dos artistas e organizações culturais – sob a tutela ou não do Ministério da Cultura - com o Estado.

3. Importa ainda frisar que a presente crise, não obstante servir de excelente pretexto para as transformações que devem ser concretizadas, não é causa dos problemas do sector, mas tão somente uma das suas manifestações.

4. Enquanto o sector cultural depender quase exclusivamente da figura tutelar que é o Estado, não só como única fonte de financiamento, mas como instigador de estratégias de internacionalização, de promoção da criação contemporânea, de difusor e legitimador de retóricas importadas e burocratas, não se deverão esperar quaisquer modificações na forma como o sector trabalha.

5. O sector cultural não é tão independente quanto devia ser nem dispõe de mecanismos para o ser. Uma parte significativa do sector não parece querer sê-lo sequer. Há alterações estruturais na forma como o sector cultural trabalha e se relaciona com a sociedade, com eventuais financiadores ou com os seus públicos que podem ser concretizadas. No entanto estas alterações têm que partir das organizações culturais, dos teatros nacionais às associações, das micro companhias de dança aos museus. Não deverá partir do Ministério da Cultura ou de qualquer outro serviço sob a sua tutela, mas sim dos artistas e das organizações que acolhem ou produzem as suas obras.

6. Há duas excepções em Portugal, no entanto, que parecem confirmar que uma outra forma de gerir a actividade artística e cultural é possível: a Casa da Música e a Fundação de Serralves. Em ambos os casos subjaz, em primeiro lugar, um projecto artístico sólido, atento à envolvente social, politica ou económica. Mas para além destas características, estes dois projectos souberam encontrar mecanismos – um modelo legal inovador e vontade de fazer as coisas de forma diferente – que permitem uma representatividade de todos os stakeholders (os financiadores mas não só) na sua estrutura.

7. Este modelo organizacional tem-se revelado garantia de transparência, agilidade, capacidade acrescida de angariação de financiamentos alternativos, estratégias pedagógicas arrojadas e de captação de novos públicos, de introdução de ferramentas de gestão modernas ou de um inovador posicionamento internacional (veja-se a aparentemente inocente mudança de nome da Orquestra Nacional do Porto para Orquestra Sinfónica do Porto casa da Música).

8. A presença de privados - filantropos, o sector empresarial ou membros de reconhecido mérito cultural ou científico da sociedade - nos órgãos sociais das organizações culturais traz óbvios ganhos para o funcionamento quotidiano destas, da supervisão e aconselhamento ao financiamento complementar.

9. A relação mecenática deverá, de igual forma, começar nos órgãos sociais e não com um telefonema do Ministério da Cultura para uma qualquer empresa. É nos órgãos sociais da organização que deverão nascer, e ser acarinhados, os laços afectivos entre esta e os seus públicos, a comunidade de eventuais patrocinadores e mecenas, com a comunidade escolar ou científica.

10. A questão de um eventual choque entre a Direcção Artística ou de Programação e a presença de privados na organização não deverá ser motivo de preocupações. A experiência da maior parte das grandes organizações culturais internacionais assim nos demonstra.

11. Importa salientar que um modelo que promova este tipo de autonomia, libertando a organização de alguns constrangimentos que a total dependência do Estado cria, não é exclusivo da figura legal “Fundação”. Estes mecanismos podem ser implementados nas associações (afinal, o modelo administrativo mais comum no sector cultural português), ou em vários outros modelos administrativos existentes. Haverá sempre ressalvas ou limitações legais nalguns casos, mas o fundamental passará por uma cultura de governo diferente que, se bem implementada, se apresentará como contributo fundamental para um tecido cultural emancipado e responsável pelo seu futuro.

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